terça-feira, 27 de março de 2012

A Alma do Cinema: reflexão de Federico Fellini

    
     "Acusaram-me de fugir à realidade e de refugiar-me no sonho.
     Penso que não se pode considerar a realidade como um panorama de uma superfície única, pois uma paisagem tem várias espessuras e, a mais profunda - aquela que somente a linguagem poética pode revelar - não é a menos real.
     Quero ir além da epiderme das coisas.
     Chamam a isso o gosto do mistério.
     Aceito de bom grado esta expressão, com a condição de escrevê-la com M maiúsculo. Não me refiro a certo mistério, cultuado por alguns, e que não passa de um sucedâneo poético com que querem salpicar a realidade. Para mim, este Mistério é o mistério do homem, as grandes linhas irracionais de sua vida espiritual: o amor, a salvação, a redenção, a encarnação... No centro dessas espessuras sucessivas está Deus que, para mim, é a chave dos mistérios.
     Creio que Jesus é não somente o maior personagem da História da Humanidade, mas que ele continua a sobreviver em todo aquele que se sacrifica pelo seu próximo.
     Ignoro os dogmas católicos. Sou, talvez, um herege.
     Meu cristianismo é bruto.
     Não frequento os sacramentos. Mas penso que a oração poderia ser considerada como uma ginástica que nos aproximaria cada vez mais do sobrenatural. Pratiquei-a antigamente. Agora, só sei rezar na hora do medo e da tristeza.
     É preciso saber rezar na hora da alegria.
     Entrevi o caminho certo da salvação.
     Antes, a religião era, para mim, uma simples suspeição da alma. Um dia, encontrei um anjo que me estendeu a mão. Segui-o. Mas, depois de ter dado alguns passos, deixei-o e voltei atrás. Ele, porém, permaneceu em pé, no mesmo lugar, esperando-me. Eu o revejo nos momentos de sofrimento, cada vez um pouco mais envolto em brumas. Eu lhe digo: "aspetta", "aspetta", como eu o faço com qualquer um.
     Receio que, um dia, eu o chame e não mais o possa encontrar.
     Mais do que Jesus, o anjo foi sempre aquele que me desperta do meu torpor espiritual.
     Quando eu era criança, ele era a encarnação de um mundo fantástico. Depois, ele se tornou a encarnação de uma urgência moral."


      
    






          
Federico Fellini, cineasta italiano
A alma do cinema

2 comentários:

  1. André!

    Eu estou lendo o livro que você me deu ''Curso de Psicanálise'' e estou adorando. Comecei a ler o capitulo sobre a Transpsicanálise e achei fantástico. Você teria algum livro que considere especial para me recomendar sobre Psicologia Transpessoal ou algum que o tenha inspirado? Eu vi alguns trechos de uma entrevista com o mitólogo Joseph Campbell, sobre a ''jornada do herói'' que é frequentemente usada na indústria cinematográfica, principalmente de Hollywood (que a tornou vulgar) e achei curioso você citá-lo no capítulo sobre Transpsicanálise.

    Em relação ao mestre Fellini, eu suspeito que sinto o mesmo quando ele diz: ''Quando eu era criança, ele era a encarnação de um mundo fantástico. Depois, ele se tornou a encarnação de uma urgência moral.''
    Mas o que, em sua opinião, significa essa ''urgência moral''?

    Continuarei lendo o seu livro que está transcendentalmente interessante !

    Um abraço

    Filipe Keppe

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  2. Para Fellini, "Deus é a chave dos mistérios". Nessa linha de pensamento, ele diz que é o anjo aquele que o desperta do torpor espiritual. Viver em torpor espiritual traz embotamento, mal-estar, angústia.
    Para você que respira cinema e se identifica com Fellini, vale a pena buscar alguns significados: o que urge? o que é moral? A obra desse grande mestre, Fellini, está repleta desses símbolos e acredito que esta questão seja algo de valor particular para você. Boa leitura da obra de Fellini, bom contato com seus mensageiros internos.

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