Atitude Lúdica e Expansão de Consciência
autoria: Prof. Dr. Walter Trinca - Psicanalista e Professor da Universidade de São Paulo.
* Artigo originalmente publicado nos Anais do I Congresso Brasileiro de Ludodiagnóstico - outubro de 2009.
A atitude lúdica diz respeito a uma disposição mental considerada livre por excelência, tendo por paradigma o brincar da criança, que frui em liberdade o prazer de se entregar a seus objetos de relacionamento, entretenimento e divertimento. Essa atitude passa por contato com o ser interior, do qual emana a mobilidade psíquica. Na psicanálise, o ser interior pode ser pensado como a realização no indivíduo do ser que ele é (TRINCA, 1999). Cada indivíduo conta com a realidade primária de ter um ser que responde por sua existência, estando na base das noções de si mesmo. Ele é um núcleo essencial e um foco originário que fundamenta a verdade interior e mais profunda do existir pessoal, pela qual esse indivíduo pode se afirmar “eu sou” em sua identidade, distinguindo-se, definindo-se e qualificando-se. A característica básica pela qual podemos conceber o ser interior é sua não-sensorialidade, que se expressa como fonte de vida e de movimento. Tenho observado que o contato realizado em estado consciente com o ser interior corresponde ao que Winnicott (1975) chamou de viver criativo e liga-se primariamente à experiência de inteireza, que se expressa como “experiência de viver”. Para ele, esta experiência tem por referência o espaço potencial, que é preenchido com o brincar da criança, com a imaginação criativa, com a vida de sonhos, com a apercepção criativa, com a experiência cultural e com todo tipo de experiência satisfatória relacionada à consciência de estar vivo e de se encontrar pessoalmente presente em si mesmo e no mundo. É importante sublinhar que diferencio a noção de ser interior da noção de self, sendo aquele, basicamente, um foco de existência e este um órgão mental de consecução dessa existência, ou seja, um meio pelo qual ela se efetiva. Assim, o ser interior exerce influência em graus sobre o self, na dependência do contato que a pessoa estabelece consigo própria (TRINCA, 2007). Se somente o contato desvenda para a pessoa a natureza do ser que ela é, o estudo do distanciamento de contato constitui uma tarefa necessária e imprescindível. Quanto menor for a aproximação ao contato com o ser interior, maior será a impregnação do self por fatores estranhos àquele. Nesse caso, o self poderá ser impregnado tanto de sensorialidade quanto de fragilidade. Isso significa que quanto maior for o grau de distanciamento de contato, maior será a saturação do self por partículas, elementos e condições de um funcionamento desarmônico, em que a mobilidade psíquica diminui na razão inversa do aumento de sensorialidade ou de fragilidade. A mobilidade psíquica origina-se justamente de contato com o ser interior, tendo repercussões e influências diretas sobre o self. Emanada desse ser, ela pode ser descrita como uma disposição fluida e como um estado de abertura, de liberdade e de leveza, que também compreende uma atitude experiencial solta e espontânea, incluindo, na dependência do que estiver envolvido, a flexibilidade, a plasticidade, a elasticidade, a maleabilidade, a flutuação e o alargamento na correnteza das experiências. Tudo isso vem assegurar que na base do self iluminado por influência do ser interior está o espaço potencial, manifestando-se por mobilidade psíquica, cujas expressões mais evidentes são o gesto espontâneo e o brincar criativo. Para Winnicott, nessa área da experiência não há dissociação entre ser e brincar, uma vez que o interesse lúdico da criança consiste na busca de si mesma. Assim, em outros termos, da mobilidade psíquica decorre a atitude lúdica, sendo esta uma conseqüência direta de maior contato com o ser profundo. Nessa linha de considerações, pode-se pensar que o que impede ou anula a atitude lúdica é o distanciamento de contato com o ser interior. Quando o distanciamento se instala, a pessoa tem pela frente uma “escolha” entre duas alternativas: a sensorialidade ou a fragilidade do self. Se a “opção” for pela sensorialidade, há uma imensa gama de situações psíquicas que podem se manifestar, dependendo do grau de distanciamento de contato que vier a se instalar. Para cada grau de distanciamento, há determinado tipo de manifestação ligada à sensorialidade. Esta diz respeito a elementos que são saturados de concretitude ou que têm as características, propriedades ou qualidades da concretitude, os quais já preexistem ou vêm se introduzir no aparelho psíquico, determinando manifestações emocionais, congnitivas, imagéticas e outras, tanto de forma consciente quanto inconsciente. A sensorialidade, quando não for normal, poderá se constituir em obstáculo à atitude lúdica, porque determina modos, padrões e sistemas de funcionamento mental tendentes, em graus, à concretitude e ao inanimado. A fragilidade, por sua vez, quando se instala por conta do distanciamento de contato, determina a ocorrência de enfraquecimento e de esvaziamento do self. Para haver atitude lúdica, é necessário ultrapassar a esfera dos encobrimentos e da invisibilidade do ser interior à consciência, afastando-se as interferências ao contato com ele, causadoras de sensorialidade e de fragilidade. Isso quer dizer que se deve proporcionar a libertação das condições obstrutivas da mente, sejam elas consideradas patológicas ou não. Um dos aspectos consiste em lidar com a sensorialidade no nível da superação dos condicionamentos e das relações de tipo predominantemente concretista. Ou seja, uma desmaterialização dos vínculos, a fim de que se tornem realmente afetivos e profundos. O que nos deixa contentes e felizes é o contato significativo, relacionado ao sentido do que é vivo e encontrado nas raízes que nos ligam a nós próprios e ao Universo. Um contato que se assemelha à concentração em si mesmo e que se realiza tal como o brincar, que proporciona a experiência de estar só, mesmo na presença de alguém. Quanto maior for o contato, maior será o fluxo livre e o fluir criativo que emanam da mobilidade psíquica. A atitude lúdica corresponde, portanto, ao estado de deixar-se ser, equivalente à flutuação e ao fluxo da correnteza de um rio. É preciso que a vida siga seu curso e que a recebamos com um mínimo de interferência dos medos, desejos e outras formas de sentir passional. Para além de nossas disposições sensoriais, as coisas e situações revelam naturalmente suas fisionomias e seus sentidos, dizendo-nos o que têm a dizer. Em determinado grau da profundidade de contato, cessam as turbulências e os conflitos que são próprios da sensorialidade e da fragilidade, vindo a se apresentar um amplo espaço aberto na mente, despertado pelas condições não-sensoriais presentificadas no self. Emerge, portanto, um espaço interno vivo, em estado de espontaneidade, leveza, colorido, movimento, brilho, limpidez, eteridade, abrangência, entre outros aspectos. A atitude lúdica não é outra coisa senão a emergência desse espaço abertona mente pela presença alargada e profunda de nosso ser à consciência.
texto de autoria do Prof. Dr. Walter Trinca, psicanalista e professor da Universidade de São Paulo.
Referências Bibliográficas
TRINCA, W. – Psicanálise e expansão de consciência: Apontamentos para o novo milênio. São Paulo: Vetor, 1999.
———. O ser interior na psicanálise: Fundamentos, modelos e processos. São Paulo: Vetor, 2007.
WINNICOTT, D. W. – O brincar e a realidade. Trad. J. O. Aguiar Abreu e V. Nobre. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
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